Luiz F. Autran M. Gomes[1], em 17.09.2006
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Um tema que tem me interessado nos últimos vinte e poucos anos tem sido a origem da família Autran. Este era o segundo dos dois sobrenomes de solteira de minha mãe, Marilda Lisboa Autran (1917- 1973). Devo meu interesse por esse tema principalmente ao extenso trabalho de genealogia desenvolvido por Orlando da Graça Autran (1911-1991), que me despertou para o relativamente muito pouco que se sabe sobre o mesmo.
A questão da origem de um nome de família é uma questão freqüentemente dissociável da questão da origem de uma família. No caso de ‘Autran’, por exemplo, a etimologia do nome é bem conhecida. Fontes como Larchey (1880), Dauzat (1980), Schultheis (1985) e Chylek (1990) são unânimes em apontar a origem germânica desse nome, como sendo fruto da contração de ‘alt’ (velho) e ‘hraban’ (corvo)[2]. Em suas versões latinas, o mesmo nome aparece com ‘Audderamnus’, no século VII, e ‘Aldedrannus’, ‘Altrannus’, ‘Autramnus’, ou ‘Altramnus’, no século IX [Longnon (1886); Longnon (1895); Förstemann (1900)]. O nome ‘Altran’ teria sido transformado em ‘Autran’ no século XI [Larchey (op. cit.)].
Em culturais patriarcais, as famílias têm início usualmente com uma liderança masculina e com a escolha de um nome. Sabe-se, ainda, que, até o século XIII, inexistiam, a não ser na nobreza, nomes de família na França. Dauzat (op. cit.) nos ensina que muitas vezes tomava-se o nome de uma personalidade destacada da época – um herói, por exemplo - para se criar um nome de família. No caso de ‘Autran’, é impossível identificar-se uma única figura, seja masculina ou feminina, mítica ou histórica, responsável pelo surgimento da família. Ainda assim, é importante observar-se que, dentre alguns Autran franceses, persiste o mito de a família tenha se originado de um pirata, de origem sarracena, proveniente do norte da África [Autran (1984); Autran (2006)]. Sobre esta possível origem sarracena norte-africana, bem como sobre o aparecimento dos nomes de famílias não nobres na França, cito aqui Dauzat (op. cit.):
“Dans le Midi, c’est la légende árabe: on oublie simplement que les rarissimes Sarrasins qui auraient pu échapper au massacre aprés la bataille de Poitiers ou après leurs diverses incursions dans le Midi auraient dû se convertir et donner à leurs enfants les noms de baptême em usage dans le pays: d’oú il resulte qu’on ne peut retrouver aucun élément árabe dans l’anthroponymie méridionale (sans compter que les noms de famille ne se sont formés qu’à partir du XIIIe siècle).” (p. VII)
Ainda sobre a invasão desses ‘bárbaros’, é interessante citar-se Braudel (1989):
“São na época designados pelo nome de sarracenos ou muçulmanos e os árabes, inclusive os instalados na Ifriqiyya, atual Tunísia, ponto de partida da conquista da Sicília e dos reides em direção às costas cristãs do Mediterrâneo Ocidental.” (p. 100)
Considera-se que a vitória do rei dos francos Charles Martel sobre os invasores muçulmanos, na batalha de Tours, em 732, teria contribuído para evitar um processo de islamização na Europa.
Embora isto possa se constituir em um evento isolado, encontra-se, tendo nascido em 1610, em Peyroules, Alpes de Hautes Provence, um certo ‘Jehan Autran’ (autor desconhecido-b, 2006); ‘Jeahan’ é sabidamente um prenome muçulmano.
Por outro lado, observa-se que ‘Autran’ é um nome que aparece também no meio de neófitos – isto é, judeus convertidos à religião católica – do sul da França, no século XVI [Iancu-Agou (2001); Dolan (1996)]. Reforçando esta provável origem judaica, observe-se que ‘Autran’ também é uma das entradas, como nome de família de origem judaica, em Zubatsky e Berent (1996). Provavelmente o mesmo personagem – ou um pai e seu filho, homônimos – um neófito de Marseille de nome Antoine Autran, aparece em Iancu-Agou em 1512 (como pagador ou doador de uma determinada quantia à cidade de Marseille) e, na mesma década, como nobre do Comtat – Venaissin[3] (esposando Marie de Carmejane) na Histoire Héroïque et Universelle de la Noblesse de Provence avec les Cartes Armoriales (autor desconhecido-a, 1970). De acordo com esta última obra, a aliança iniciada com as núpcias de Marie de Carmejane e Antoine Autran é citada também no Essai Généalogique de la Noblesse du Comtat – Venaissin, artigo “Autran” (ao qual eu ainda não tive acesso direto). Autran é assim identificada como uma família nobre do Comtat – Venaissin (Saint-Allais, 1872/1873).
Ao longo da vertente provavelmente cristã isto é, franca), encontra-se um Autran na criação do Condado do Vexin, na segunda metade do século IX, desafiador do Roi Eudes (Vickoff, 1998). Teria sido este Autran o mesmo conde Aletramn, que enfrentou em 885 os invasores normandos e que depois abandonou Pontoise? (Gobry, 2005). A resposta à esta questão encontra-se provavelmente na mensagem de correio eletrônico de Autran (2005), que passo a reproduzir, em sua tradução ao português:
“ No que concerne o sobrenome Autran: tenho plena convicção de que sua origem é franca. Há dez anos, residindo na região parisiense, contatei o autor do artigo sobre Equevilly (nota do tradutor: trata-se de J-P Vickoff, citado em nossa lista de referências). Em seguida, contatei localmente várias prefeituras e livrarias. Segundo vários historiadores locais do século XIX esse Autran, Conde do Vexin, era um personagem chave dentre as mais altas autoridades do Império na francisação (comentário do tradutor: tradução de ‘francisation’, palavras que designa o processo de dominação do território pelos francos, povo germânico que invadiu a Gália nos séculos III e IV) do território “francês”. Ele destacou-se na resistência à invasão viking (comentário do tradutor: o que está de acordo com Gobry, que o chamou de ‘conde Aletranm’), mas perdeu seu poder na luta intestina franco-franca pela escolha de um Rei da França. O futuro Rei Eudes, que ganhou a disputa, mas contra quem ele se opusera, destituiu-o de seu condado. E confiscou-lhe as terras de um dos mais estratégicos condados para a construção do reino nascente da França. Por misteriosas razões, condenado à morte pelos vencedores nas lutas e contrariamente ao que sucedeu aos outros nobres, ele escapou à sentença e desapareceu na história independentemente da anistia concedida a seguir. Seus filhos reapareceram nos relatos dos historiadores, mas com as mudanças de nomes ligados aos títulos de nobreza que começaram a surgir, evaporando-se nas alianças com outras famílias nobres francas.
Desses escritos pode-se concluir sem nenhuma dúvida que o nome ‘Autran’ é de origem franca (ou seja, germânica antiga), tendo sido latinizado e vulgarizado ...” (tradução do autor)
Assim sendo, pode-se concluir que: (1) há evidências históricas de que o nome ‘Autran’ é de origem franca (ou germânica antiga); (2) é possível que descendentes dos piratas sarracenos que invadiram o sul da França tenham – já convertidos ao Cristianismo – adotado ‘Autran’ como seu sobrenome a partir do século XIII, quando surgiram os nomes de família na França, fora da nobreza; (3) também é possível que a designação de Autran como uma família nobre do Comtat – Venaissin se explique por uma aliança entre os descendentes dos piratas sarracenos invasores – desejosos de se estabelecerem como uma família, com um sobrenome respeitado – e descendentes do conde Aletramn, do Vexin.
Como conclusão, pode-se afirmar que é impossível detectar-se a origem precisa da família Autran, muito embora haja indícios de que o surgimento da mesma deva ser buscado principalmente entre o ano 800 e o início do século XVI. Nesta direção devem ser apontadas as próximas investigações sobre este tema.
Referências
Autor desconhecido-a. Histoire Héroïque et Universelle de la Noblesse de Provence avec les Cartes Armoriales Tome III Suppléments et Table. Marseille: Laffite Reprints, 1970).
Autor desconhecido-b. Notre Généalogie. <http://perso.orange.fr/thierry.bianco/julia/pag31.htm>. Acesso em 17.09.2006.
Autran, J-M. (2005) Mensagem de correio eletrônico postada em
Autran, L. (1984) Correspondência privada com o autor, datada de 05.07.1984.
Autran, M. <http://perso.wanadoo.fr/marius.autran/genealogie/patronyme_autran.html> e <http://perso.wanadoo.fr/marius.autran/glossaire/tome1/sicie.html>. Acesso em 20.08.2006.
Autran y Arias-Salgado, E. Correspondência privada com o autor, datada de 29.03.1985.
Braudel, F. (1989) A Identidade da França Os Homens e as Coisas. São Paulo: Editora Globo.
Chylek, F. Correspondência privada com o autor, datada de 02.05.1990.
Dauzat, A. Dictionnaire de Poche de la Langue Française Noms et Prénoms de France. Paris : Librairie Larousse, 1980.
Dolan, C. Pérennité des Relations Sociales et Identité Chez les Néophytes Aixois du XVIe Siècle. Octobre 1996. In:
Föstermann, E. Altdeutsches Namenbuch. Nordhausen, 1856.
Gobry, I. Histoire des Rois de France Eudes Fondateur de la Dynastie Capétienne. Paris: Pygmalion, 2005.
Iancu-Agou, D. Juifs et Néophytes en Provence (1469-1525), Paris-Louvain: Ed. Peeters, 2001.
Larchey, L. Dictionnaire des Noms Cotenant la Recherche Étymologyque des Formes Anciennes de 20,200 Noms Relevés sur Les Annuaires de Paris. Paris: Au Frais de l’Auteur, 1880.
Longnon, A. Polyptyque de l’Abbaye de Saint-Germain des Près Rédigé au Temps de l’Abbé Irminon et Publié d’Après le Manuscrit de la Bibliothèque Nationale. Première Partie : Texte du Polyptyque. Paris: Chez H. Champion, 1886.
Longnon, A. Polyptyque de l’Abbaye de Saint-Germain des Près Rédigé au Temps de l’Abbé Irminon et Publié d’Après le Manuscrit de la Bibliothèque Nationale. Tome I Introduction. Paris : Chez H. Champion, 1895.
Saint-Allais, M. de. Nobiliaire Universel de France ou Récueil Général des Généalogies Historiques des Maison Nobles de ce Royaume, tome troisième. Paris : Librairie Bachelin-Deflorenne, 1872/1873.
Schultheis, J. Correspondência privada com o autor, datada de 28.07.1985.
Vickoff, J-P. Ecquevilly Historique Dáprès les "Notes Historiques sur Ecquevilly" de Pierre Bovard Presenté par J-P Vickoff. <www.rad.fr/78920.htm>. Acesso em 07.04.98.
Wikipedia. “Comtat Venaissin”. In: <http://fr.wikipedia.org/wiki/Comtat_Venaissin>. Acesso em 20.08.2006.
Zubatsky, D.S. e Bertent, I.M. Sourcebook for Jewish Genealogies and Family Histories. Teaneck: Avotaynu, 1996.
[1] Ofereço este texto à memória de Orlando da Graça Autran.
[2] Note-se que brasão da família Autran mostra um corvo no alto de uma torre (Autran y Arias-Salgado, 1985).
[3] O Comtat Venaissin era uma parte do departamento de Vaucluse, na França, compreendendo as cidades de Cavaillon, Carpentras e Vaison-la-Romaine. Pertencendo originalmente ao conde de Poitiers e de Toulouse Alphonse, passou ao rei da França em 1271 e à Santa Sé em 1274. Os condados de Avignon e de Venaissin formaram em 1348 um enclave papal. A tolerância dos papas permitiu aos judeus de ambos condados viverem neles sem inquietações. Apenas em 1814 o papado reconheceu a perda dos condados para a França (Wikipedia, 2006).
2 comentários:
Sou Altran por parte de pai, devido a um CÁ de mama , fiz o teste agenetico tenho altercao no gene PALB-2. Os geneticistas concluíram ser da família Altran judaica do leste Europeu, que apenas os q de lá fugiram sobreviveram. Esper ter colabirado pra pesquisa de nossa origem.
Complementado Autran e não Altran como saiu no corretor de texto
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